terça-feira, 6 de maio de 2008

BASE DE HIDROAVIÕES

Rampa

A antiga Base de Hidroaviões de Natal

Jeanne Fonseca Leite Nesi

In “Natal Monumental”, Natal, Fundação José Augusto, APEC, 1994.

A antiga Base de hidroaviões de Natal está localizada à margem direita do rio Potengi, próximo a sua embocadura. A posição geográfica da Base é representada pelas seguintes coordenadas: 35º03’ de longitude oeste de Greenwich e 5º46’ de latitude sul.

O prédio da Base, hoje conhecido como A Rampa, possui importância histórica, pois representou um verdadeiro marco na história da Aviação e da 2ª Guerra Mundial.

Na década de 30, utilizou-se o local como uma improvisada estação de passageiros da “Panair do Brasil”, depois desapropriada pelo Governo Federal, em 1937. Nas proximidades do prédio havia uma rampa de acesso e um hangar, para os hidroaviões do “Sindicato Condor”, empresa alemã de transporte aéreo.

As obras de construção da Base de Hidroaviões foram iniciadas em março de 1941, sendo realizadas mediante contrato firmado com o governo dos Estados Unidos. O período de construção prolongou-se até março de 1944. O prédio foi construído para assegurar as operações dos aviões de patrulha da Marinha Americana, empenhada na guerra anti-submarina e nas atividades de salvamento de aviões no mar, ao longo da costa do nordeste do Brasil.

Com a decretação do Estado de Guerra, o governo brasileiro apossou-se de toda a área vizinha à Base – 40.127,36 m2 – utilizando-a inicialmente como uma base de apoio a um grupo de 24 aviões Catalina PBY-5A, da Marinha Americana, e dos aviões Martin Marine PBM, que também ali operavam.

Em dezembro de 1945, após o término da 2ª Guerra, a Base foi considerada sem utilidade para as forças armadas dos Estados Unidos. Foi então o prédio transformado em clube social. Na ocasião, foi construído o flutuante com um pequeno cais de acesso, que também servia de pista de cancã para os freqüentadores do clube.

Posteriormente, passou a ocupar o local o Cassino dos Oficiais da Força Aérea.

O prédio acha-se implantado naquela área de 40.127,36 m2, de onde se descortina uma das mais belas vistas do Potengi. (...). O imóvel da Rampa apresenta um partido de planta retangular, desenvolvido em dois pavimentos. Possui um mirante, que foi de grande utilidade durante o período da II Guerra Mundial.

Trata-se de uma edificação muito vazada, com sólidas arcadas, possivelmente abertas após a Guerra, com a finalidade de adaptar o prédio a sua condição de clube. À época, o muro que protegia a Base, certamente muito elevado, foi demolido. Substituiu-o um outro muro, mais baixo, decorado com os distintivos da FAB.

Na área de implantação da Base, existiu um berço de ferro, com rodas maciças de borracha, que descia a rampa e transportava os aviões anfíbios, do rio para o pátio de estacionamento. Hoje, daquela rampa restam dois trilhos de ferro, testemunhas de uma época de intensa agitação mundial, quando Natal teve um papel de relevante importância, tendo se tornado conhecida internacionalmente como o “Trampolim da Vitória”.

Toda a área, onde funcionou a Base de Hidroaviões de Natal acha-se classificada como bem patrimonial e cultural

NATAL IN THE WORLD WAR II


Franklin D. Roosevelt (in the front seat)
and Getulio Vargas (in the back seat)
visit Parnamirim

Fonte: http://www.natal-brazil.com/basics/natal-world-war.html

The World War II gave an impulse to the growth of Natal and surroundings.
It is estimated that, before the War, Natal had 40,000 inhabitants; after the war, not only the population doubled to nearly 80,000 inhabitants, but the city also had improvements in the infrastructure and one airport (the airport of Parnamirim).

The Americans only entered the War on December 7th 1941, when the Japanese attacked Pearl Harbour; however, since the eclosion of the conflict, in 1939, the Americans were watching with preoccupation the expansion of the Axis powers.
American strategists were concerned with an eventual movement from the Axis towards the American continent; since 1940, Italians and Germans were occupying positions in North Africa; the next step could be the invasion of South America.
In 1939, the Major Delos C. Emmons, commander of the US Air Force, overflew the coast of Brazilian Northeast, and concluded that Natal was the most strategic point, both for a German invasion and for the Allies to use as a supporting site to the operations in Africa.


The US were not at war yet, and, to not create diplomatic tensions, decided to create a Program for Development of Airfields; to avoid the direct envolvement of the US government, the airline company PanAm was the co-signer of the agreement.
The first airplane to land in Parnamirim was the "Numgesser-et-Coli", a monomotor Breguet-19, piloted by Dieu Coster et Le Brix, on October 14th 1927; before then, only aquaplanes arrived in Natal, on the waters of the Potengi River. According to Clyde Smith Junior, this was itself a Historic flight, because it was the first inter-Atlantic flight in the East-West direction. There was not an airport, however; instead, there was little more than the runway.

With fundings of the US government, the "Parnamirim Field" was constructed. It became the largest US basis outside American territory. Not only the airport, but also the infrastructure (roads, housing, etc) was built from ground.
Thousands of Brazilians migrated to Natal, looking for work. Also, Brazilian soldiers were sent to the Army and Navy bases. These movements explain the growth in population during the period.

After US entered the war, there was no more need for diplomatic actings. On December 11th 1941, a US Navy fleet composed by 9 aircrafts PB4 Catalina and one Clemson arrived in Natal; two weeks later, 50 marines arrived, to patrol the basis.
It is estimated that, during the War, between 3,000 and 5,000 Americans were located in Parnamirim. Also, tens of thousands of Americans and British passed by Natal, in transit. Parnamirim was the busiest airport in the world; flights were taking off and landing every three minutes.


By request of US President Franklin D. Roosevelt, a meeting between him and Brazilian President Getúlio Vargas took place in Natal, on January 27th 1943. The Presidents visited the bases of Air Force, Navy and Army. This meeting consolidated the relations between Brazil and US; in 1944, Brazil sent an Expeditionary troop to fight in Europe.

Because of its importance in the war, the Parnamirim Field was called Trampoline to Victory.

JEAN MERMOZ

Fonte: http://www.pioneirosdoar.com.br/pioneiros/mermoz/mermoz.htm

Nasceu em Aubenton, Aisne em 1901.

Foi o criador da aviação postal transoceânica na França, realizou a primeira viagem, levando os primeiros volumes de correspondência - 130 quilos - para a América do Sul. Partiu de Saint-Louis no dia 12 de Maio de 1930 num monomotor Laté 28 com flutuadores e pousou em Natal 21 horas depois.

Quando terminou seus estudos, ingressou na aviação como piloto de linha. Foi o primeiro a cruzar nos dois sentidos o Atlântico Sul em 1933, utilizando-se do trimotor "Arc-en-Ciel".

Fez essa rota inúmeras vezes, até se perder, no dia 7 de Dezembro de 1936, ao largo de Dakar, no hidravião "Croix-du-Sud", um Laté 300.

Arquivo: Pioneiros do Ar


segunda-feira, 5 de maio de 2008

GAGO COUTINHO / SACADURA CABRAL

Fonte: http://www.instituto-camoes.pt/cvc/ciencia/p25.html


Sacadura Cabral e Gago Coutinho

Carlos Viegas Gago Coutinho, nasceu em Belém, Lisboa, em 17 de Fevereiro de 1869. Era filho de José Viegas Gago Coutinho e de Fortunata Maria Coutinho. Em 1885 concluiu o curso do Liceu e matriculou-se na Escola Politécnica para preparar a sua entrada na Escola Naval, um ano depois. Entrou para a Armada como aspirante em 1886. Em 1890 foi promovido a guarda-marinha, em 1891 a segundo-tenente, e em 1895 passou a primeiro-tenente. Em 1907 foi promovido ao posto de capitão-tenente e em 1915 ao posto de capitão-de-fragata. Em 1920 passou a capitão-de-mar-e-guerra. Em 1922 foi promovido ao posto de vice-almirante, e em 1958 a almirante.

Podemos dividir a actividade de Gago Coutinho em quatro áreas, que se sucedem cronológicamente enquanto áreas de actuação prioritária: marinha, sobretudo de 1893 a 1898, trabalhos geográficos, entre 1898 e 1920, navegação aérea, de 1919 a 1927, e história da náutica e dos descobrimentos, de 1925 a 1958.

O seu primeiro embarque prolongado foi na corveta “Afonso de Albuquerque”, de 7 de Dezembro de 1888 a 16 de Janeiro de 1891, em viagem para Moçambique e na Divisão Naval da África Oriental. Desta corveta passou à canhoneira “Zaire”, na qual esteve até 24 de Abril de 1891, viajando para Lisboa. Colocado na Divisão Naval da África Ocidental, embarcou sucessivamente na lancha-canhoneira “Loge”, que comandou, na canhoneira “Limpopo”, na canhoneira “Zambeze”, e na corveta “Mindelo”. Em serviço nesta corveta no Brasil em 1894 contraiu a febre amarela, pelo que foi internado no Hospital da Beneficência Portuguesa no Rio de Janeiro. De novo na Metrópole, esteve embarcado na canhoneira “Liberal” e na corveta “Duque da Terceira”. Fez nova viagem no Atlântico Norte na corveta “Duque da Terceira”. Viajou até Moçambique no transporte “Pero de Alenquer” e depois passou à corveta “Rainha de Portugal”, e em seguida à canhoneira “Douro”, que o trouxe para Lisboa. Embarcou depois na corveta couraçada “Vasco da Gama”, até 31 de Março de 1898, da qual transitou para a sua primeira comissão de geógrafo ultramarino, em Timor.

Desde Março de 1898 a maior parte da actividade de Gago Coutinho desenvolveu-se no âmbito da Comissão de Cartografia, nascida em 1883, primeiramente em trabalhos de campo de delimitação de fronteiras ou de geodesia processados em Timor, Moçambique, Angola, e S. Tomé, e a partir de 1919 como vogal, passando a presidir aos seus destinos em 1925, até à sua transformação na Junta de Investigações do Ultramar, em 1936.

Entre 27 de Julho de 1898 e 19 de Abril de 1899, Gago Coutinho esteve envolvido em trabalhos de campo, na delimitação de fronteiras de Timor e no levantamento da carta deste território. De regresso à metrópole, foi nomeado para a delimitação de fronteiras no Niassa, trabalho que decorreu entre 5 de Setembro de 1900 e 28 de Fevereiro de 1901. Partiu depois para Angola, onde se dedicou à delimitação da fronteira de Noqui para o rio Cuango, até fins de 1901. Em seguida trabalhou na delimitação de fronteiras no distrito de Tete, em Moçambique, entre 27 de Fevereiro de 1904 e 18 de Dezembro de 1905.

Foi nomeado chefe da Missão Geodésica da África Oriental, nela tendo trabalhado durante cerca de 4 anos, de Maio de 1907 até ao início de 1911. Foi nesta missão que conheceu Sacadura Cabral, com quem travou amizade e que viria a ser o mentor dos projectos futuros de navegação aérea. Em seguida foi escolhido para chefiar a missão portuguesa de delimitação da fronteira de Angola no Barotze, a qual só se constituiu definitivamente em 1912. Regressando à metrópole em 1914, foi nomeado em 1915 chefe da Missão Geodésica de S. Tomé.

Os seus trabalhos ao serviço da Comissão de Cartografia, foram interrompidos apenas pelos períodos em que esteve embarcado nas canhoneiras “Sado” na India e “Pátria” em Timor, de Setembro de 1911 a Agosto de 1912, e de Março de 1922 a Dezembro de 1923, quando da travessia aérea Lisboa-Rio de Janeiro.

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Hidroavião bimotor Felixtowe F.3, utilizado por Gago Coutinho e Sacadura Cabral na viagem Lisboa-Funhal

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Sextante de Gago Coutinho usado

na travessia do Atlântico.

Em meados de 1919, quando terminava os trabalhos relativos à missão geodésica de S. Tomé, Gago Coutinho, incentivado por Sacadura Cabral, começou a dedicar-se ao progresso dos métodos de navegação aérea. Tinham voado pela juntos pela primeira vez em 1917. Sacadura Cabral planeara já a viagem aérea ao Brasil, que pretendia fazer por altura da comemoração do centenário da independência desse país, em 1922. Gago Coutinho passou então a dedicar-se à resolução dos problemas que se punham à navegação aérea sem pontos de referência à superfície. Para experimentar os processos de navegação aérea em estudo, Sacadura Cabral e Gago Coutinho fizeram diversas viagens juntos, incluindo a primeira viagem aérea entre Lisboa e Funchal, em 1921, aperfeiçoando deste modo os métodos de observação em desenvolvimento. Estes estudos culminaram em 1922 com a realização da viagem aérea entre Lisboa e o Rio de Janeiro.

Foi membro de diversas associações científicas, entre as quais a Academia das Ciências, a Academia Portuguesa de História, a Sociedade de Geografia de Lisboa e várias Sociedades de Geografia do Brasil.

Actividade Científica

Gago Coutinho realizou muitos trabalhos de delimitação de fronteiras das colónias portuguesas, nomeadamente em Timor, Moçambique e Angola. Em Timor procedeu à demarcação da fronteira com a parte da ilha então ocupada pelos holandeses, nos anos de 1898 e 1899. Em Moçambique delimitou as fronteiras no Zambeze e no lago Niassa, no ano de 1900, estabelecendo também triangulações. Em 1901 e 1902 chefiou a equipa de delimitação de fronteiras no Norte de Angola, entre esta colónia e o Congo Belga. Entre 1907 e 1910 trabalhou de novo em Moçambique, para voltar a Angola em 1912 em trabalhos de delimitação da fronteira Leste com a Rodésia. Entre 1915 e 1918 chefiou a missão geodésica em S. Tomé, onde implantou marcos para o estabelecimento de uma rede geodésica da ilha, após o que fez observações de triangulação, medição de precisão de duas bases e numerosas observações astronómicas. No decurso destas observações comprovou a passagem da linha do Equador pelo Ilhéu das Rolas. A Carta resultante destas observações foi entregue em 1919 em conjunto com o Relatório da Missão Geodésica da Ilha de S- Tomé 1915-1918, que foi considerado oficialmente o primeiro trabalho de geodesia completo referente a uma das colónias portuguesas. Faleceu em Lisboa a 18 de Fevereiro de 1959.

O que celebrizou Gago Coutinho foi o seu trabalho científico pioneiro na navegação aérea astronómica e a realização, com Sacadura Cabral, da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, entre Lisboa e o Rio de Janeiro. A partir do momento em que voou pela primeira vez com Sacadura Cabral, em 1917, Gago Coutinho tentou resolver os problemas que se punham à navegação aérea astronómica. Colocava-se o problema da dificuldade de definição da linha do horizonte a uma altura normal de voo. A dificuldade em efectuar medições precisas de posição em situação de voo com um sextante vulgar colocava problemas de natureza instrumental e metodológica.

Para resolver o problema de medição da altura de um astro sem horizonte de mar disponível Gago Coutinho concebeu o primeiro sextante com horizonte artificial que podia ser usado a bordo das aeronaves. Este instrumento, que Gago Coutinho denominou «astrolábio de precisão» permite materializar um horizonte artificial através de um nível de bolha de ar e é dotado de um sistema de iluminação eléctrico do nível de bolha que permite fazer observações nocturnas. Entre 1919 e 1938 Gago Coutinho dedicou-se ao aperfeiçoamento deste instrumento, que veio a ser fabricado e difundido pelo construtor alemão C. Plath com o nome de «System Admiral Gago Coutinho».

Corrector de rumos

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Corrector de rumos Coutinho Sacadura, utilizado na navegação.

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Trajecto da viagem Lisboa-Rio de Janeiro

Hidroavião Lusitânia, no qual Gago Coutinho e Sacadura Cabral partiram de Lisboa em 30 de Março de 1922.

Hidroavião Santa Cruz com o qual Gago Coutinho e Sacadura Cabral cumpriram o último troço do trajecto entre Lisboa e Rio de Janeiro, exposto no Museu de Marinha em Lisboa.

Em colaboração com Sacadura Cabral concebeu e construiu um outro instrumento a que chamaram «Plaqué de abatimento» ou «corrector de rumos», que permitia calcular graficamente o ângulo entre o eixo longitudinal da aeronave e o rumo a seguir, considerando a intensidade e direcção do vento.

Para comprovar a eficácia dos seus métodos e instrumentos, Gago Coutinho e Sacadura Cabral fizeram várias viagens aéreas, entre as quais uma viagem Lisboa-Funchal, em 1921, em cerca de sete horas e meia. Nesta viagem, Gago Coutinho executou 15 cálculos de rectas de altura e várias observações da força e direcção do vento.Segundo escreveu, os processos de navegação utilizados “eram os suficientes para demandar com exactidão qualquer ponto afastado da terra, por pequeno que fosse, recurso este que se tornava muito essencial numa projectada viagem aérea de Lisboa ao Brasil”. A viagem que finalmente demonstrou a todo o mundo o valor destes instrumentos e métodos foi a travessia aérea do Atlântico Sul, entre Lisboa e o Rio de Janeiro, entre 30 de Março e 17 de Junho de 1922.

Após esta viagem e as subsequentes homenagens e recepções oficiais, Gago Coutinho continuou a trabalhar na Comissão de Cartografia e passou a dedicar grande parte da sua atenção à história das viagens do descobrimento dos séculos XV e XVI, tendo publicado muitos textos em que analisava os métodos utilizados e procurava explicar como conseguiram os portugueses realizar as navegações a longa distância e ver terra nos séculos XV e XVI. A partir das suas experiências de navegação à vela em diversos navios em que prestou serviço procurou explicar como os portugueses utilizavam já então os métodos mais adequados para fazer face aos ventos e correntes contrárias.

Fez viagens em que praticou a observação com astrolábio semelhante aos que usavam os portugueses no século XV, comparando os seus resultados com os obtidos em sextantes e cronómetros com auxílio de sinal de rádio. Destes estudos concluiu que a experiência dos navegadores portugueses da época dos descobrimentos foi determinante para possibilitar a navegação astronómica, e que as viagens eram devidamente planeadas a partir da experiência e que as suas rotas de regresso não eram fruto das tempestades e outros imprevistos, como defendiam alguns historiadores. São de destacar os seus estudos sobre o regime de ventos e correntes no Atlântico Norte, que obrigava os navegadores portugueses a contornar pelo mar largo as correntes e ventos contrários, no regresso da Guiné ou da Mina. Esta manobra, chamada volta da Guiné ou volta da Mina, e que Gago Coutinho habitualmente chamava ‘volta pelo largo’, começou a ser praticada em meados do século XV, sendo no início do século XVI uma navegação de rotina.

Fernando Reis

Publicações

A única publicação em livro foi o Relatório da Missão Geodésica da Ilha de S- Tomé 1915-1918. No entanto, publicou inúmeros trabalhos em publicações periódicas, tendo sido muitos destes trabalhos reunidos em dois volumes organizados e prefaciados pelo Comandante Moura Brás: A náutica dos descobrimentos. Os descobrimentos marítimos vistos por um navegador: colectânea de artigos, conferências e trabalhos inéditos do Almirante Gago Coutinho, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1951-1952, 2 vols.

Muitos outros textos foram publicados em dois volumes editados por Teixeira da Mota: Obras completas de Gago Coutinho, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1972.

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Luís de, Curso de História da Náutica, Lisboa, Alfa, 1989.

BOLÉO, José de Oliveira, Gago Coutinho e Sacadura Cabral, Lisboa, Sociedade de Geografia, 1972.

CORRÊA, Pinheiro, Gago Coutinho, Precursor da Navegação Aérea, Porto, Portucalense Editora, 1969.

Correia, José Pedro Pinheiro,

LEMOS; Carlos M. Oliveira e, O Almirante Gago Coutinho, Lisboa, Instituto Hidrográfico, 2000.

REIS, Manuel dos, CORTESÃO, Armando, Gago Coutinho Geógrafo, Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1970, sep. de Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Tomo XIII, 1969.

Apontadores

Aeromodelismo e Aviação em Portugal

Raid Aéreo Lisboa-Rio de Janeiro 1922-2002


A ANTI-LENDA DO DESCOBERTO

Nevoeiro cerrado. Quase não ouve o barulho do próprio motor. Dos companheiros, nem vivalma, não se vê um palmo à frente do nariz. Cáspite, não vai ser um nevoeirozinho que o obriga a voltar para trás. Um português não desiste. Como Lázaro nos jogos Olímpicos, uns anos antes, um exemplo de lealdade à Pátria. A tarefa ser apenas de rotina, nem entra nas suas cogitações. É uma missão, tanto faz se de guerra ou de paz, missão é. A sua honra e a da pátria confundem-se. Dizem que do nevoeiro virá, um dia, D. Sebastião. Pelo nevoeiro desaparece Sacadura Cabral para nada mais restar que uns tantos destroços de aeronave, ruínas impessoais duma vida feita de muitas vidas. E também de coragem, que outros chamam loucura. De tenacidade, que outros chamam teimosia. De perfeccionismo, que outros chamam doença. De honra, que outros chamam religião. De oftalmia incurável, diagnosticada por Gama Pinto (que o aconselha a deixar o serviço de pilotagem), e à qual não se rende...

UM BILHETE DE SANTOS DUMONT

Biarritz, 23-11-1924

Prezado Amigo Almirante Gago Coutinho,

Amigo não pode fazer uma ideia de quanto ansioso e triste tenho estado com as notícias da morte provável do nosso bom Amigo Sacadura Cabral!

Porque não seguiu ele os meus conselhos de descansar depois de tão grande feito que foi a viagem Portugal- Brasil?

Eu continuo a pedir a Deus que ele continue ainda com vida e esteja a bordo de algum barco veleiro e que nós possamos vê-lo ainda.

Do amigo

Santos Dumont

BREVE CRÓNICA DA AERONÁUTICA PORTUGUESA

(DOS PRIMÓRDIOS ATÉ SACADURA)

Em Alverca é instalado o Parque de Material Aeronáutico. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Pedro Fava Ribeiro de Almeida é o primeiro nome que se conhece ligado à Aviação Lusitana. Alferes, oficial de Engenharia, é o primeiro entusiasta pelas novas aventuras. Funda aquele que se viria a tornar no Aero Club de Portugal, recrutando o amigo Sotero Esteves e tendo artes para ter mais dezassete pessoas a trabalhar. Consegue concretizar em Alverca o Parque de Material Aeronáutico, conhecido por "Feira do Major", posto que ocupava então. Prefere a aerostação ao romantismo decadente das tardes elegantes - e alguma mocidade com desafogo financeiro e espírito patriótico segue-lhe as pisadas.

À indiferença da maioria da população e ao desprezo das classes altas, o voo do mais pesado que o ar vai contrapondo manobras mais publicitárias que realmente úteis, porém decisivas no desenvolvimento do nóvel meio de transporte, que só alguns visionários intuem para que servirá. Nenhum deles vai intuir que o primeiro serviço que vai notabilizar a Aeronáutica será o da Guerra, durante a primeira mundial, mas isso, por enquanto, são outras histórias...

Em 1910, Manet, aviador francês executa o primeiro voo em Portugal, em Belém, à incrível altura de cinquenta metros. Tripulava um Blériot idêntico ao que atravessara recentemente o Canal da Mancha. Entretanto, e comprovando mais uma vez que não há revolução tecnológica sem forte contribuição dos artistas, o poeta João Gouveia empolgava as plateias com demonstrações de Aeronáutica infantil, a antepassada do actual Aeromodelismo. Por dez centavos, no atafulhado Salão da Ilustração Portuguesa, no edifício do jornal o "Século", órgão que se encontrava inteiramente identificado com a necessidade de propagandear a causa, ou no Parque das Laranjeiras, com direito a banda de música e fogos de artifício, todos aprendiam a sonhar com a glória dos malucos das máquinas voadoras...

Os acontecimentos sucedem-se. Fernando Vale funda o efémero jornal "Aviação". O Comércio do Porto, por iniciativa do jornalista Bento Carqueja, compra um biplano Farman - que faz demonstrações em Belém e a seguir no Porto. O "Século", para não ficar atrás, compra um de cinquenta cavalos-vapor (50 HP) e faz nele evolucionar o francês Morel.

Em 1914, finalmente, temos o nosso primeiro mártir alado, D. Luís de Noronha, que abandonara as tardes dançantes no Clube Estefânia e despenha o seu Voisin no Tejo - após demasiado tempo na água, morre depois no hospital.

Em 1915, as necessidades da Guerra levam um grupo de oficiais, na maioria oriundos de Cavalaria, a partir para o estrangeiro, única forma de obter o diploma de aviadores. É assim que para os Estados Unidos partem Cifka Duarte, Carlos Beja, Francisco Aragão e Salgueiro Valente. Para Inglaterra, António Maia, Lelo Portela e Oscar Monteiro Torres. Mas para França parte Santos Leite com dois camaradas da Marinha de Guerra: António Caseiro e Sacadura Cabral. Este último é já um nome de prestígio nos anais militares e científicos, e havia pouco regressara de África.

Durante a Guerra, apenas um destes homens perderá a vida, Monteiro Torres. Sacadura e Caseiro brilham durante a fase de aprendizagem. Regressados a solo pátrio, enviam-nos para Vila Nova da Rainha a dar instrução. Da tarefa desemcumbem-se com acerto, auxiliando os camaradas a ganhar asas também.

Em 1921 dão-se as primeiras descidas de pára-quedas, em Alverca. O capitão-engenheiro Mário da Costa França e o tenente José Machado de Barros, perante muitas entidades oficiais, lançam-se da barquinha dum balão cativo a novecentos metros de altura - e escapam ilesos...

A 5ª arma, como então se dizia, passava do futuro ao presente.

A CEIFEIRA I

Vão decorridos muitos anos já sobre esse triste acontecimento. Não me recordo de qualquer frase trocada antes de entrar no avião. De resto, bem pouco falámos nessa manhã da descolagem para Lisboa, que viria a ser a arrancada de Sacadura para a morte.

Tudo parecia simples...

No momento da partida vi apenas um dia como os outros, sem particularidade alguma a não ser a próxima e honrosa companhia de Sacadura entregue à organização metódica do empreendimento que sonhava.

Umas horas depois, via esse dia já duma forma diferente. A primeira etapa estava vencida pelo aparelho de Santos Mota e pelo meu, mas o Fokker de Sacadura não chegava nem voltava para trás. Começou a ansiedade a que o desapontamento pôs termo, com o aparecimento de parte dum flutuador do aparelho, devolvida pelo mar.

(Comandante Pedro Ferreira Rosado in "Breve História da Aviação Portuguesa"

de Mário Costa Pinto)

O CONTINENTE NEGRO

Trabalhei com Sacadura Cabral muitos anos em África, em estudos geográficos. Em 1913 encontravamo-nos na fronteira de Baroce. Éramos astrónomos ambulantes... Um dia ouvimos os pretos comentar as nossas actividades: "os brancos nunca se perdem porque à noite perguntam a Deus onde estão." Rimo-nos da sua infantilidade, porque o que nós fazíamos à noite era observar as estrelas! E é tudo.

(Gago Coutinho)

E DEPOIS DO 14-BIS?

Artur de Sacadura Freire Cabral Júnior nasceu a 23 de Maio de 1881 na freguesia de Celorico (São Pedro), concelho de Celorico da Beira, distrito da Guarda, filho de D. Maria Augusta da Silva Esteves Sacadura e de Artur Sacadura Freire Cabral. Possuía uma especialidade rara, os trabalhos geográficos ultramarinos, com os quais se familiariza através do Comandante Gago Coutinho, que chegara a Moçambique em 1907. Geógrafos e hidrógrafos, os seus trabalhos em Angola e Moçambique granjeiam-lhes grande reputação.

Entretanto, algo de excepcional acontece: Santos-Dumont, com o seu 14-bis, arranca do solo num mais pesado que o ar movido, pela primeira vez, por meios mecânicos. Sacadura põe-se logo a sonhar e consegue contagiar Gago Coutinho. Depois de abrir fronteiras em terra, abri-las no ar... Afinal, as estrelas tinham sido sempre suas companheiras, é tão somente questão de chegar ainda mais perto delas. O projecto vai aguardando melhores dias até que, em 1914 rebenta a Primeira Guerra Mundial.

Sacadura regressa à Metrópole e depois vai aprender a voar. De França, envia um postal a Gago Coutinho, que ficara em Lisboa:

Meu Caro futuro Chefe: lembranças da minha prova de viagem que estou fazendo. Um abraço do Sacadura.

Apenas sete anos depois, a travessia aérea do Atlântico Sul concretiza-se e portugueses dão novamente novos mundos ao mundo.

A CEIFEIRA II

Momentos após a descolagem perdi-o de vista. Estava um nevoeiro denso que se pegava com o mar. Penetrámos nele e seguimos a nossa rota. Voei sempre baixo, por vezes a dez metros da água, que estava tranquila, sem carneirada, um mar que se confundia com o nevoeiro. Não sei a que altura voava o comandante Sacadura, mas pode ter batido no mar na desgraçada ilusão do nevoeiro. Várias coisas podem ter sucedido, e esta é uma delas!

Comandante Pedro Ferreira Rosado in "Breve História da Aviação Portuguesa"

de Mário Costa Pinto.

RASCUNHO DE UMA VIDA

Sacadura assenta praça. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Sacadura assenta praça em 10 de Novembro de 1897. É aspirante de Marinha. Sucessivamente é promovido a segundo-tenente em 1903, a primeiro em 1911, a capitão-tenente em 1918, a capitão-de-fragata por distinção em 1922.

É louvado pelo desempenho profissional, como soldado e como geógrafo. Demarca mais de 800 quilómetros de fronteira em África. Realiza vários feitos aeronáuticos antes da viagem Lisboa-Rio: Calshot-Lisboa, Lisboa-Funchal e Lisboa-Madrid.

Sempre embarcado por mais de dez anos, é depois Director dos Serviços de Aviação Marítima (1918) e comandante de esquadrilha da Base Aérea Naval de Lisboa. Também adido aeronáutico em Paris e Londres.

É oficialmente dado como desaparecido em 15 de Dezembro de 1922.

Cavaleiro da Legião de Honra, Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, Grã-Cruz de Sant´iago e Espada, Placa de Honra da Cruz Vermelha Portuguesa.

A CEIFEIRA III

E não tinha larguíssima razão para sê-lo? O voo ao Brasil, extraordinária proeza mundial, feita em circunstâncias inéditas e assombrosas, bem podia enchê-lo de vaidade! Tinha uma força de vontade invulgar que tornava excepcional a sua forte personalidade, reunindo todas as condições para o fazer triunfar. E triunfou sempre até ao derradeiro momento. O seu fim, mesmo, é uma apoteose ao seu altíssimo valor. Ninguém o viu tombar, ninguém o viu morrer, ninguém o olhou vencido pela morte! Elevou-se e penetrou na História.

Comandante Pedro Ferreira Rosado in "Breve História da Aviação Portuguesa"

de Mário Costa Pinto.

CRUZAR O EQUADOR DE AVIÃO

"Qualquer viagem aérea é um ponto de interrogação", diz Sacadura. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

O "Lusitânia" chega ao Rio de Janeiro. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Qualquer viagem aérea é um ponto de interrogação e muito mais esta, que apresenta numerosas dificuldades. Conheço o ´bico de obra´ que ela é e posso dizer que há cinquenta por cento de probabilidades a seu favor e outras tantas contra. A viagem é possível, mas para isso é preciso que tudo corra normalmente ou, se assim o quiserem, que o Padre Eterno se conserve ´pelo menos´ neutral no pleito que se vai travar entre nós e os elementos. Façamos votos por que assim aconteça, mas não cantemos vitória antes de tempo porque... ele nem sempre está de bom humor.

(Sacadura Cabral em carta aos jornais portugueses

na véspera da partida para o Brasil)

Simples geógrafos tinham provado que um avião se podia orientar no ar, com tanta segurança como o fazem os navios no mar. Tinha-se repetido a prioridade portuguesa, uns quatro séculos depois de as nossas caravelas terem passado alem do trópico. E levávamos pintada nas asas a mesma cruz vermelha de Cristo, com que nossos caravelistas devassaram - como cantou Camões - "aqueles mares" e "os novos ares que o generoso Henrique descobriu."

(Gago Coutinho em conferência a bordo do navio Vera Cruz

em viagem para o Brasil)

Já tínhamos os nervos trabalhados pelos dias de longa espera, pairando em volta dos rochedos, aguardando em cada manhã a notícia da largada do avião de Santiago de Cabo Verde. As horas passavam, monótonas, quebradas pela pesca de alguns tubarões, o arpoar das toninhas, ou o espectáculo dos vorazes esqualos perseguindo os peixes voadores na esteira de luz que os projectores lançavam sobre o mar...

Nada, porém, nos fazia esquecer aquele retardo na partida para a viagem culminante.

Pesavam sobre nós aguaceiros diluvianos e a larga calema punha no mar uns espessos tons de chumbo derretido. Sobre os rochedos esfrangalhados flutuava a espuma das vagas, afugentando a passarada que se acumulava nos picos.

Em tudo víamos receios pela sorte do avião. Tanto nos parecia o mar mais tranquilo, como julgávamos impossível uma amaragem feliz com tal ondulação. Vento, não havia. Apenas aquele constante e infatigável desfilar das ondas mortas, mudas, impassíveis...

Chegámos assim ao dia 18 de Abril. Nessa histórica manhã, veio, finalmente, a notícia da largada do avião. Tudo o mais se esqueceu. O navio inteiro era um formigueiro, todos a fazer não sei quê, Tudo a pensar no Lusitânia.

Arrimaram-se logo algumas embarcações e prepararam-se com gente, combustível e palamenta, como se fossem para uma grande travessia! O imediato do navio, o distinto e saudoso comandante Vilarinho, irradiava entusiasmo e a tudo provia, majestoso nas suas barbas branco-aloiradas.

Não sabíamos se tínhamos razão; mas, a partir duma certa hora, começámos a impacientar-nos por nada avistar...

Havia largo tempo que vínhamos catando o horizonte, tentando descobrir qualquer coisa no ar. Vigias subiam e desciam a toda a parte, ao alto dos mastros, aos cestos das gáveas, pendurados nas enxárcias. Não havia binóculo ocioso, nem bom gajeiro que tivesse ficado distraído na coberta. A guarnição estava sobre brasas!

Às vezes, já desesperados de tanto esperar, atacados de súbito desânimo, atirávamo-nos sobre os beliches, querendo esquecer aqueles momentos angustiadores. Mas em breve saltávamos cá para fora, de novo a penetrar as longas distâncias com os olhos fuzilantes.

O navio vomitava pela chaminé espessos rolos de fumo, para que mais facilmente os aviadores os descobrissem. E nada! O Sol já descia, ameaçadoramente, e o ambiente tornava-se verdadeiramente cruciante, quando alguém se lembrou de, por meio de espelhos, reflectir os raios solares sobre o horizonte, a fim de melhor revelarmos a nossa presença.

Não houve vidro em estado de servir que não viesse cá para cima; das mochilas das praças saíram os mais minúsculos espelhinhos e todos nos agarrávamos, infantilmente, a essa ténue esperança. E seria certamente bem cómico presenciar, a sangue-frio, tanta gente assim compenetrada, de espelho na mão, a faiscar ao sol.

O avião não aparecia. O guarda-marinha Henrique Fonseca (...) fraco e doente, trepou também a uma enxárcia, para de lá fazer sinais. E ali vamos nós todos, os guarda-marinhas, atrás dele, reanimados... Nada! Apenas o Sol a baixar cada vez mais, trágico, tenebroso...

Cruzando um pouco ao largo, as embarcações navegavam, prontas para tudo. Oliveira Muzanty (...) não podia disfarçar a sua preocupação, o suor encharcava-lhe os cabelos.

Até que um grito, penetrante como o aço, vivo, de uma alegria intensa, veio de lá de cima, dando a nova abençoada. Ali vinham eles!...

Não te posso , ninguém poderia descrever-te aquele instante de desvario! Não havia ali oficiais, nem comandantes, nem marinheiros. Foi um primeiro minuto de correria, tresloucados, grumetes abraçando os sargentos, comandantes e praças a darem-se as mãos, e todos aos encontrões!

Ali vinham eles! Ali vinha a imagem da Pátria novamente através dos mares sobre os céus por descobrir!

O ponto negro foi crescendo, passou sobre os penedos. A bordo entrava-se na obediência e todos estava já nos seus postos. Ouvia-se o motor e o Lusitânia começou a descer junto das embarcações.

Foi um momento apenas. Um dos flutuadores tocou a crista duma vaga e desfez-se. O avião saltou ainda e caiu pesadamente, afocinhando logo, de cauda para o ar! Ficámos gelados, mudos. Uma angústia mortal tocou-nos. Corriam algumas lágrimas. Muitos se encostavam às amuradas, exaustos, de nervos quebrados.

As embarcações correm para o avião e, a custo, de lá arrancaram os seus valorosos tripulantes. Os heróis estavam salvos, mas o Lusitânia estava perdido. Gago Coutinho sobe a escada do portaló do República, emocionado. Olhava para o seu avião, tão leal e tão querido!

- Aquele motor era o nosso coração!

O comandante Sacadura, impassível, sem sair do escaler, pediu um cigarro. E, sem qualquer outra consideração, dirigiu-se para o aparelho, meio submerso, para tentar salvá-lo. Nem uma palavra ou um gesto, de tristeza ou alegria. Um homem de aço!

(Manuel Maria Sarmento Rodrigues, em carta a Norberto Lopes,

depois publicada num jornal vespertino de Lisboa)

O que é que se tinha passado no ar? Sacadura descreve-o no seu relatório:

O vento continua abrandando e o consumo de gasolina mantém-se em, pelo menos, vinte galões por hora! Volto a discutir com o Comandante Coutinho a nossa situação, que me parece bastante grave. Devemos estar a 690 milhas dos Penedos e não temos mais que oito horas e meia de gasolina! Para chegarmos, precisaríamos de andar a 80 milhas e estamos andando a 72! O lógico, o prudente, seria voltar para trás, mas a má impressão produzida, se assim fizéssemos, certamente seria enorme! (...) Confesso que, para mim, foi este o bocado mais amargo da viagem Lisboa-Rio, porque durante nove horas e meia vivi sempre na incerteza de ter ou não ter gasolina suficiente para chegar ao término. Se assim acontecesse e tivéssemos de pousar no mar, longe dos Penedos, aqueles que não nos conhecessem suporiam sempre que tínhamos partido com gasolina suficiente, mas que, tendo-nos perdido, tínhamos terminado por pousar ao acaso em qualquer ponto do oceano, e assim ficaria por demonstrar aquilo que queríamos provar, isto é, que a navegação aérea é susceptível da mesma precisão que a navegação marítima!

(Sacadura Cabral)

Vem outro avião de Lisboa, um Fairey 16 semelhante ao Lusitânia. A viagem recomeça, mas uma avaria no sistema de alimentação do motor obriga Sacadura a amarar. Os flutuadores, começam imediatamente a meter água. Os tubarões aproximam-se. Um bicho mais afoito aproxima-se. Dirá Gago Coutinho:

- Vinha outro mais pequeno ao lado. O grande era o pai... Trazia o filho para lhe ensinar a ganhar a vida... Quando viram que o avião não era comestível, fizeram-se ao largo.

Coloca-se-lhes a questão: que fazer? Esperar os tubarões? Esperar a decisão do mar? Pôr fim à vida servindo-se da única pistola que tinham? Decidem ficar no avião até ao fim. Sacadura comenta a propósito da situação:

- A mim o que me está a ralar mais é não ter cigarros!...

Navio inglês salva-os. E será em novo avião que chegam ao Rio de Janeiro, em Junho, em apoteose. E os brasileiros, sempre fervilhantes no reinventar da língua, logo inventaram vocábulo novo para descrever situações de euforia semelhante: "sacadurismo"...

A CEIFEIRA IV

Tinha uma confiança ilimitada na sua estrela, e por isso as dificuldades para ele não contavam! Nunca o vi desanimar em circunstância alguma. Acompanhávamo-lo e ele regozijava-se com a realização dos seus vastos anseios.

(Comandante Pedro Ferreira Rosado in "Breve História da Aviação Portuguesa"

de Mário Costa Pinto)

A IDEIA DE UNIR LISBOA AO RIO DE JANEIRO POR VIA AÉREA

Relatório de Sacadura Cabral:

Pouco antes da travessia aérea do Atlântico Norte, realizada pelos Americanos, teve Lisboa a honra de receber a visita de S. Exª o Dr. Epitácio Pessoa, presidente eleito da República dos Estados Unidos do Brasil. Partidário de uma aproximação íntima das duas nações irmãs e desejoso, não só de contribuir, no pouco que em minhas forças cabia, para essa aproximação, como de manifestar o prazer que sentia por ver Portugal honrado com tão excelsa visita, apresentei a S. Exª o Dr. Vítor Macedo Pinto, que nessa época geria a pasta da Marinha, a ideia de que fosse tentada a travessia aérea de Lisboa ao Rio de Janeiro com a colaboração do Governo brasileiro.

O meu projecto era interessar nessa viagem as duas nações irmãs, conseguir um mínimo de dois aviões, cada um dos quais seria tripulado por portugueses e brasileiros, e tentar a travessia com a colaboração das duas marinhas de guerra, brasileira e portuguesa.

A meu ver, seria esta colaboração uma das melhores formas de melhor estreitar os laços que sempre existiram entre as duas nações, o meio natural de mais afectuosamente nos estimarmos e de praticamente reconhecermos que o Brasil e Portugal, apesar de geograficamente separados e de constituírem nações independentes, formam para Portugueses e Brasileiros como que uma mesma pátria, por afinidades de língua, de raça, de ideias e de sentimentos.

Este meu projecto foi recebido com a maior simpatia pelo Governo português, o qual, além de me designar para estudar a viagem, imediatamente publicou um decreto autorizando os créditos, então julgados necessários, para se efectuar e instituindo um prémio para a travessia, prémio que só podia ser conferido a portugueses e brasileiros.

O prémio em causa era no valor de vinte contos...

João de Barros, após o feito, lembra:

Se não aproveitarmos a ocasião única, o momento excepcional que atravessamos, criando com o Brasil uma situação de mútuo entendimento, económico, comercial, artístico, literário - um entendimento que seja, perante os outros países, demonstração efectiva da comunidade lusíada, vibrando e vivendo ainda em duas nações independentes e autónomas; se não fizermos da nossa vitória de hoje o ímpeto invencível das nossas vitórias de amanhã e, sobretudo, a base sólida do nosso renascimento - o acto magnífico dos aviadores será perdido.

O Governo Brasileiro acabou por desistir de patrocinar o projecto. Sacadura é que dele não desistiu. Para além de querer unir os dois países com aquela viagem, acalentava o desejo que ela fundasse os alicerces duma carreira aérea regular entre Portugal e Brasil, tornando as relações ainda mais próximas e rápidas.

Só em 1960 se estabeleceu uma carreira aérea, trinta e oito anos depois da viagem de Sacadura e Coutinho. E apenas em 1966 essa carreira passou a regular por iniciativa da T.A.P.

A CEIFEIRA V

Sacadura vive no mundo grandioso das ideias... Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a Tábua Cronológica.

Possuía um feitio muito pessoal que talvez o não tornasse simpático à primeira vista nem muito afável, mas Sacadura era um independente nos seus hábitos, desligado daqueles sentimentos que assaltam e vencem as pessoas. Vivia no mundo grandioso das suas ideias e realizava-as com inteligência rutilante e audácia admirável. Era um notável organizador que lograva chegar sempre ao ponto que aspirava. Conhecia-se. Eu não sei se isso se pode chamar vaidade, mas se se pode, ela estava certa em Sacadura, que apenas devia à sua gigantesca força de vontade os triunfos da sua vida.

(Comandante Pedro Ferreira Rosado in "Breve História da Aviação Portuguesa"

de Mário Costa Pinto)

AMOR E MORTE

- Mas, diga-nos, a voz do povo afirma que foi noiva do comandante Sacadura...

- O que a voz do povo não sabe é que um dos meus desgostos é nunca ter falado com o grande aviador nem mesmo pelo telefone... Paz à sua alma de herói e a tantos outros que o foram! (...) tiveram-me sempre como noiva espiritual, e por isso ficou-me da vida uma sensação de esmagamento ao sabê-los desferir voo para regiões mais longínquas.

"Eterna Desconhecida", em entrevista a Mário Costa Pinto,

in Breve História da Aviação Portuguesa

Gosto de ter madrinhas, mas não gosto de conhecê-las. A madrinha deixa de ter para mim o seu verdadeiro encanto, o encanto do mistério, quando a conheço.

(Sacadura Cabral)

Gago Coutinho costuma dizer:

Nós não fomos heróis. Usámos manhas de geógrafos, que se orientam pelo sol e pelas estrelas...

... eu sou um homem de café. Em toda a minha vida sempre fui simples. Quiseram fazer de mim uma outra pessoa quando do voo ao Brasil em 1922. Juntaram-nos no mesmo nome: Coutinho-Cabral, mas Sacadura era o chefe e o trabalho foi dele quase todo

"Dizem que do nevoeiro virá, um dia, D. Sebastião. Pelo nevoeiro desaparece Sacadura Cabral para nada mais restar que uns tantos destroços de aeronave, ruínas impessoais duma vida feita de muitas vidas.







































TRAMPOLIM DA VITÓRIA

TEXTOS DE AUGUSTO FERNANDES*



A CIDADE MENINA

Pequena, sem diversões, sem vida noturna, a cidade de Natal é uma saudade dos tempos idos. É u'a menina que não quer ficar moça. Pr'a que? Seu povo, porém, é simples e bom. Dentro das suas possibilidades vai vivendo. Há educação aqui. Há instrução.
Um dia fui à cidade pela primeira vez. Conhecimentos, amizades, namoros... Em poucos minutos pode-se conhecer Natal, mas são precisos anos para compreendê-la.
Certos cavalheiros que, como eu, chegaram de outras plagas, hoje vivem em Natal por algum motivo. A maioria, militar que a guerra foi buscar nos mais diversos recantos do Brasil e do mundo.
Imagino que você, leitor, veio também de uma grande cidade, onde é comum encontrar-se o que é bom e agradável, o que faz bem ao corpo e ao espírito. Bons cinemas, bons teatros, bons cassinos, boas avenidas, boas praças e jardins, boas praias, comércio, adiantada civilização e as mulheres mais lindas deste planeta. Em uma palavra: conforto.
Você, digamos, veio do sul, onde, apesar dos pesares, tudo são flores... Pois bem. Em Natal, você encontrou uma cidade diferente. Acredito que em um momento de desânimo, de tédio, você tenha deixado explodir alguma exclamação menos lisonjeira para a cidade que o acolheu tão bem. Eu também, confesso, reclamei e ainda reclamo contra certas coisas que não admito. É lógico que nós, humanos, especialmente nós que já tivemos a oportunidade de gozar das delícias de uma vida boêmia numa cidade mais civilizada, culta e próspera, sentimos às vezes certa revolta quando vivemos fora do nosso ambiente e do nosso lar.
Vamos colocar os pontos nos ii...
Em Natal, você poderia encontrar uma cidade igual ao Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre ou Belo Horizonte. Você sabe que o Brasil é um "caso" puramente geográfico. Veja-se o livro "Crítica", de Humberto de Campos (1ª parte). "Retrato do Brasil". E não me expandirei contando a história que você deve conhecer. Temos no sul - grandes cidades - bem adiantadas, enquanto - no norte - com raras exceções, o que vemos é verdadeiramente digno de atenção por parte dos que trabalham pelo desenvolvimento moral e material do nosso Brasil. Cidades, como Natal, precisando de auxílio, de cooperação.
Sob a influência da guerra e outros fatores (seca, emigração, etc.) a sua população aumentou consideravelmente. Dizem as novas estatísticas que de mais de 50%. Considerando esse aumento de seres humanos, em sua maioria, militares; as conseqüências diretas da guerra; a vida passou a ser enfrentada sob outro aspecto (carestia em tudo). Chegaremos, pois, à conclusão fácil de que por muita benevolência, boa vontade e paciência que tivéssemos, sempre haveria de aparecer um momento para menosprezar a cidade que culpa nenhuma tem das transformações sociais e ideológicas que se passam no mundo. Nós, que aqui chegamos, deixamos lá distante aqueles que fazem parte do nosso Ego, aqueles para quem uma separação é verdadeira tortura, pois não sabem por quanto tempo e, o mais doloroso, se voltarão.
Assim, longe dos que nos são caros, longe de todo o conforto de outrora, enfrentando os mais sérios obstáculos, sem termos a ocasião de encontrar bons divertimentos, bons lugares para recrear o espírito, é admissível que saia uma expressão áspera, em sinal de protesto - o grito d'alma de quem não está satisfeito com essa vida agitada em que vivemos. É por isso que eu te peço, natalense amigo, perdoa-nos se algumas vezes ofendemos a cidade que é tua e é nossa, porque ela também é Brasil.
Natal hoje está muito diferente. Transformou-se, como tudo, segundo Lavoisier. Natal de hoje é Natal da guerra, do Trampolim para a África. Surgiram novidades de todas as formas. É Natal dos militares, dos americanos de Parnamirim. Outro movimento, outra gente, outras emoções. Natal onde as águias metálicas passam...
Natal do clima saudável e das noites bonitas.
Há, de dia, pelas ruas, grande agitação, carros enormes, caminhões cheios de gente, de operários que vão trabalhar. Natal do meu tempo é Natal do "Grande-Ponto", da "cidade-alta" e da "cidade-baixa". Natal d'A Rádio Educadora, d'A República, d'O Diário e d'A Ordem. É Natal do Alecrim, de Petrópolis, do Tirol e da Ribeira. Ruas pequenas e bem limpas, onde se nota a falta de arborização. É Natal do cinema Rex e do Teatro Carlos Gomes. É Natal das garotas simples, simpáticas e inteligentes. É a mocidade do Ateneu, do Colégio das Neves, da Escola Doméstica, do Colégio Santo Antônio.
É Natal dos esportistas do ABC, do Alecrim, do Santa Cruz, do América e do Atlético. Natal onde se pode encontrar ainda um tempo que não acabou: o bom tempo da verdadeira amizade, aquele em que é comum o sujeito pegar o café e o bonde pr'o amigo.
É Natal inteligente e culto, onde podemos encontrar Luís da Câmara Cascudo, Elói de Sousa, Esmeraldo Siqueira, Lourenço Branco, Américo de Oliveira, Rui Paiva, Alvamar Furtado, Antonio Fagundes, Djalma Maranhão, José Saturnino, entre tantos outros da velha guarda.
A nova geração surge brilhantemente representada por jovens como Murilo Melo Filho, Veríssimo de Melo, Hélio Santiago, Leonardo Bezerra, José Guará, Romeu Aranha, etc. Este é o meu Natal querido do rio Potengi - o rio que é um verdadeiro poema.
É Natal - a cidade onde eu e outros colegas recebemos verdadeiras lições de experiência da vida e de brasilidade. É Natal dos nossos vôos arriscados, das nossas "Patrulhas". Será a cidade onde (se bem que não tenha encontrado um Paraíso) formei ainda mais o meu caráter. Será Natal das boas amizades, da rapaziada camarada, "igual" e sem pedantismo. Será Natal de uma geração vigorosa, nascida e criada num mundo de realidades.
Será Natal - sempre e sempre - pedaço do Brasil! Nosso berço e nossa alma...


O TRAMPOLIM DE HOJE
(1945)


Em 1945, a Base Aérea de Natal é uma Base completamente diferente daquela de 42, 43 e 44, quando o mundo vivia entre ferro e fogo. Hoje, o Campo de Parnamirim - o famoso Trampolim da Vitória - representa uma página gloriosa na História da última guerra. Ainda é, assim mesmo, uma grande Base.
Os nazistas, os fascistas, os fanáticos japoneses, foram todos derrotados. É certo que o mundo ainda enfrenta grandes problemas - conseqüência lógica da tempestade que passou - mas, se houver boa vontade e compreensão entre os homens - teremos realmente um mundo de paz. O Trampolim da Vitória não deve ser esquecido, porque ele foi um fator importante na derrota do Eixo. Hoje, nos céus de Natal, não vemos - em tão grande número - bombardeiros de outrora, mas as águias metálicas continuam pousando em Parnamirim. São as mensagens da paz. Surgiram as companhias comerciais e vemos então os grandes transatlânticos aéreos cruzando o espaço em todas as direções. É o mundo novo. Que esse mundo não seja efêmero!
O alicerce ficou. Os americanos - quase a totalidade - já voltaram, como prometeram - e entregaram aquilo que devemos defender com cuidado e carinho: as suas instalações.
Hoje, não vemos mais, como antigamente, os homens do "Army" e os da "Navy" espalhados pelas ruas da cidade, vivendo e brincando como qualquer filho da terra. Eles voltaram. O tempo é outro. Uma vida nova surgiu. Que sejam felizes! Em nossa Base, também, o panorama transformou-se. Outros companheiros chegaram, outros morreram - como o Novais e o Divino, mas o Trampolim continua firme, com a sua história, com a sua vida, nem sempre cheia de belezas.
Poucos são os que - desde os primeiros tempos - ainda se encontram trabalhando, vivendo e voando, nesse pedaço de terra, onde o vento, a areia e o sol forte do Nordeste, são os companheiros de todos os dias.
É justo citarmos esses nomes: Roberto Pessoa Ramos, Pedro Luis Pereira de Souza, Sebastião Cequeira, José Carlos Teixeira Rocha, Eduardo Costa Vahia de Abreu, Oscar Tempel da Costa Gadelha, Altamiro Di Bernardi, Alex Gunther Schaly, Carlos Walsh, Everton Batalha, Myron Campelo da Silva, Manoel Magalhães Filho, Marceliano de Almeida Neto, Urilo Ribas Ribeiro, Telêmaco Manoel Antunes, José Soares Vargas, Hélio Moreira de Souza, Wilson Silva Cardoso, Licio de Castro, Denes Alcântara, Orlando Bulcão de Figueiredo, Gizelar de Oliveira, Pedro de Ascenção Silva, Arnaldo Yule de Oliveira, Modesto de Souza, Danilo Teixeira da Silva, Moacir da Silva Ribeiro, Carlos Alberto de Araújo Souza, Aldo Schimidt, Furio Tonso, Flávio Pereira do Vale, José Augusto Nunes, Rangel Toledo, João A. do Nascimento.
São pilotos, Especialistas, infantes, técnicos, artífices, homens que enfrentam sérios obstáculos - longe da família e de todo o conforto. Recordemos, também, os que continuam em Recife, Fortaleza e Belém, os da velha guarda. Eles são os verdadeiros heróis, embora não tenham recebido medalhas nem títulos honoríficos. Sinto não poder escrever o nome de todos, mas a glória, a verdadeira glória, pertence a eles, os heróis desconhecidos...


PARNAMIRIM

Luis de Câmara Cascudo - o historiador potiguar, que eu admiro pela sua cultura - mantém em "A República" uma coluna com o nome de "Ata Diurna".
Um dia, o senhor Coronel Luís Tavares Guerreiro escreveu-lhe pedindo que falasse sobre Parnamirim. E ele falou. De tudo que já foi publicado sobre Natal, suas Bases e os americanos, o trabalho de Câmara Cascudo merece destaque. É um documento histórico.



"O meu velho amigo Coronel Luiz Tavares Guerreiro, em "carta aberta" que me foi amavelmente dedicada "A República", de 3-10-1943, evocou magnificamente a história viva de Parnamirim, tão agradável às lembranças de sua mocidade. Tenho toda alegria em saber ter sido um oficial do Exército Brasileiro quem localizou, indicou e divulgou o campo de Parnamirim, numa antevisão maravilhosa de que seria um dos maiores aeródromos da América, determinando que Natal constituísse uma das oito capitais do Mundo, vértice onde se entrecruzam os meridianos de todas as comunicações.
Nada mais agradável que receber, de mão autorizada e amiga, tais informações preciosas.
Agora, direi o que sabia.
Quando os holandeses dominavam no norte do Brasil, governando o Conde de Nassau, viveu o grande George Macgrave, a organização mais completa de sábio e pesquisador que possuíram os batavos. Macgrave entendia de tudo, deixando documentação sapiente de sua sabedoria e previsão cultural. Viajou, pacientemente, toda região administrada pelos holandeses, observando as vilas e propriedades. Desenhou um mapa, fixando as moradas, engenhos, currais, matas, rios. E mais, riscou o curso das estradas, as estradas reais e as derivantes e atalhos, divulgando as comunicações populares do Brasil holandês. Publicou-o em 1643.
O título é assim: Brasiliae Geografica & Hidrographica Tabula Nova, continens Praefecturas de Ciriji, cum Itapuama, de Paranambuco Itamarica Parayza & Potigi vel Rio Grande. Quam proprijs observationibus ac demensionibus, diuturna peregrinationi a se habitis fundamentaliter supestruebat & delineabat Georgius Macgraphius Germanus, anno Christi 1643.
Esse mapa compreende de Sergipe à enseada de Jenipabu, perto do Natal. Foi publicado na íntegra e em folhas esparsas, ilustrando o livro de Barléu, o famoso "Res per octennius etc", traduzido para o português pelo Prof. Cláudio Brandão e impresso pelo Ministério da Educação, 1940.
Quando Macgrave desenha a parte referente à Capitania do Rio Grande, marcando a estrada principal que vinha desde Pernambuco, assinala, depois de Apetimbu, com um índice de vegetação, o topônimo "Parnamirim".
É o primeiro registro conhecido.
Parnamirim é contração de Paraná-mirim, rio-pequeno, denominação tupi. Como se vê, já estava figurando num mapa da primeira metade do século XVII.
E sua utilização no movimento aviatório?
1927 foi um ano de intensa glória aérea. Natal espalhou seu nome no noticiário da imprensa universal. Em fevereiro, chegou o marquês de Pinedo; em março, os portugueses, com o "Argos" e três hidroaviões anfíbios do Exército Norte-Americano, esquadrilha comandada pelo então major Herbert A. Daqrue; em Maio, o inesquecível "Jaú"; em Junho, voltou do Rio de Janeiro o "Argos".

Às 14 horas de 18 de Julho de 1927 aterrissava na praia da Redinha o primeiro avião da Latecoere, um Breguet-307, com motor Renault, de 300 HP. Pilotava-o Paul Vachet, trazendo Deley como navegador e Fayard, mecânico.
Logo depois que, graças à indicação do coronel Guerreiro, o campo de Parnamirim ficou provisoriamente preparado, inaugurou-o um avião ilustre, o "Nungesseret-Coll", pilotado por D. Costes e J. M. Briv, dupla que realizava a volta-do-Mundo.

Desceram às 23:45 de 14 de Outubro. Foram os primeiros a fazer o salto Atlântico, de São Luís do Senegal à Natal. O avião era um aparelho Breguet, nº 1685, monomotor Hispano-Suizo, de 600 HP. Há um livro desses dois aviadores contando, com notável exagero, a linda jornada, "Notre Tour de la Terre", Hachete, Paris, 1928.
A 20 de novembro o Laté-25, nº 616, pilotado por Pivot, com Pichard e Gaffe, mecânicos, estabelecia a linha aeropostal regular, no Campo de Parnamirim.
Ali, desceram os veteranos do ar, Bert Hinkler, em Novembro de 1931, dando o salto do Brasil para Bathurst; Jean Mermoz, com o "Arc-enciel", Janeiro de 1935; o assombroso "Couzinet-70", trimotor; em Fevereiro, James Mollison, o "az" inglês, com o vitorioso "The Heart's Content", vindo de Dakar, num monomotor Gipsy Mayor, aparelho Puss Moth, idêntico ao que Lindenberg atravessou o Atlântico sul, de New York à Paris.

Assim dizem minhas notas de antigo repórter.

A família Tavares Guerreiro é secular no Rio Grande do Norte. Em Julho de 1714, Manuel Tavares Guerreiro faz parte do Senado da Câmara do Natal. Em 1734, Luís Tavares Guerreiro, com o mesmo nome do meu amigo, requeria e recebia três léguas de terra na Ribeira do Potengi, fazendo pião no riacho de Santa Rosa. Em 1757, o Padre Francisco Tavares Guerreiro tinha propriedades no riacho Salgado.

Falta razão do topônimo "Taborda".

Em 1706, era vereador do Senado da Câmara do Natal o senhor Manuel Rodrigues Taborna, possivelmente o primeiro sesmeiro daquelas paragens.
Com quase duzentos e cinqüenta anos de Rio Grande do Norte, os Taveres Guerreiros têm o direito da defesa de um amor que autoridade tradicional tornou profundo e nobre.
Eis porque, dois séculos e meio depois, um descendente apontava na Campina de Parnamirim o lugar predestinado, ninho onde pousariam os pássaros de aço, prontos, em eterna vigília, para o vôo e para a luta".



AUGUSTO FERNANDES
(Sargento da FAB – Livro Virtual do site RESERVAER)




A CAMISA DO POETA

Parnamirim Field
Parnamirim Field

No tempo da guerra, todo mundo sabe, muita gente se empregou em Parnamirim Field. Dentre esses pioneiros burocratas – recrutados, diziam, sob o olhar atento do pastor Doutor Mateus, tido como coronel da inteligência da USAF - estavam Othoniel Menezes, o poeta da “Praieira”; "Seu" Galvão, pai do Professor Cláudio Galvão, este, escritor e pesquisador emérito; Dioclécio Sérgio de Bulhões, homeopata, homem boníssimo e caridoso, que mais tarde seria Vereador em Natal, por muitas legislaturas. Agenor Ribeiro, depois empresário; Rômulo "Minha Gata", que deixando Parnamirim foi para o Banco do Brasil; Emanuel Rivadávia, também, posteriormente,serviu ao BB, no México. Era tão fluente em inglês que foi quem leu para o General Eisenhower um discurso escrito por Othoniel, saudando o futuro Presidente dos Estados Unidos, em nome do pessoal civil da Base. Misturando-se a essa boa gente, para lá também acorreram alguns "artistas" do Grande Ponto, filhinhos-de-papai, arranhando inglês, charlando, dançando fox no Aéro, bodando na Pedro Velho...

A "sopa" (o ônibus) guiada por "Charuto", negão forte e valente, embarcava o pessoal na Pracinha (“Pedro Velho”, hoje Praça “Cívica”) e “imbiocava” na Parnamirim Road, a “Pista”. Fazia o pit stop no portão da Base, ia em frente e deixava os "porcos" no Post of Engineers. "Porco", era o apelido dado aos funcionários subalternos, os operários, que viajavam nas carrocerias dos caminhões e que depois se generalizou. De Natal à Base, no ônibus, não viajando criança ou mulher - o que era raro - a esculhambação era grossa. Vida alheia, anedotas cabeludas, acenos para as “piniqueiras” no trajeto, o escambau.

Othoniel Menezes, arredio, desconfiado – da raça irritável dos poetas, como afirmava Virgílio -, somente com os mais íntimos trocava piadas. Era sofrido, pobre – mas, altivo, culto e probo. Jornalista de renome, Secretário da “A República”, amigo de Café Filho, socialista, admirador de Luiz Carlos Prestes, escrevera em 1935, sozinho, o jornal “A Liberdade”. Taxado de “comunista”, passara mais de três anos na cadeia. Em Parnamirim, não ligava para o apelido de "Ipecacuanha" (tinha mania por chá caseiro!). Deu o troco ao autor da proeza, o colega Dioclécio Bulhões, o homeopata, que tinha uma imponente trunfa: sapecou-lhe a alcunha de "Professor Bendengó" ! Prudente, o vate guardava distância dos "artistas" do Grande Ponto, alguns deles, até, filhos de amigos e parentes.

O diabo, porém, atenta! Um belo dia, na rebarba de uma daquelas algazarras, do fundo do coletivo, ouviu, clara e maliciosa, a acaçapante e maldosa sentença: "Othoniel, poeta da camisa rasgada!"

Vilipendiado, trêmulo, levantou-se e partiu pra briga. Era homem de coragem comprovada. Não conseguiu chegar à patota. Os amigos, todos, não o deixaram. A coitada camisa que vestia, cerzida e passada, engomada, pelas mãos da sua Maria, era tão só o espelho da sua pobreza respeitável e resignada! Não lhe pisassem...! Não conseguiu identificar o autor da agressão. Nunca soube quem foi. Nunca lhe disseram.

Minutos depois, já no Post of Engineers, pálido, calado, à vista dos companheiros solidários, sentou-se e, a manuscrito, em letras garrafais, numa folha de cartolina made in USA - depois afixada no Quadro de Avisos - FULMINOU o gaiato:

" A camisa rota, oh corno
- que só você foi quem viu -,
foi de uma foda no torno
com a puta que lhe pariu !”

“Ipepacuonha”esboçou um acanhado sorriso para o futuro vereador - o “Professor Bendengó” - e encerrou, para sempre, o assunto.

Laélio Ferreira de Melo, Cronista


A velha Confeitaria Cisne

Parnamirim Field
Soldados americanos fazem pose no "Parnamirim Field", antes do embarque para a África

Protásio Melo

Ficava quase no final da rua João Pessoa, 162, junto ao prédio da loja Nações Unidas, esquina com a Rio Branco. Aquele local era ponto de destaque da cidade. Na década de 30, foi o Café Avenida onde a rapaziada elegante se reunia de paletó e gravata e, algumas vezes, até de bengala, para tomar café. Os jovens bebiam menos nesse tempo. Iam, ali, mais para passar o tempo, contar suas conquistas ou ‘‘bodagens’’ e, como não podia deixar de ser num grupamento humano civilizado, ‘‘sentar a pua’’ em quem prevaricava. A cidade era pequena. Sabia-se de tudo e se conhecia todo mundo.
Depois veio a Grande Ponte, de Andrade, que também exerceu papel importante na vida da Natal em desenvolvimento. O Grande Ponto viu alegria, cachaçada, brigas de Milton Siqueira, perseguição política, esculhambação de estudantes, prisões, enfim, um aglomerado à altura de uma cidade que se modernizava.
Vestia-se camisa esporte, ‘‘silek’’, que os americanos introduziram nos costumes. Os assuntos eram outros, já se viajava para fora de Natal para conhecer um Brasil maior, os filhinhos de papai - os mauricinhos - arrumados à última moda e dirigindo carros modernos, para olhar o ‘‘footing’’ de tarde, descendo a João Pessoa ou subindo a Rio Branco, que alguns ainda chamavam de rua Nova.
E se passaram os tempos, as condições de vida acabaram com o velho Grande Ponto, e a Loja Nações Unidas abre elegante estabelecimento na esquina. Mas ficara a grande falha. Não havia mais um lugar para sentar, conversar, beber ou comentar a vida alheia. É quando aparecem os irmãos Rossini, Múcio e Aldemar Miranda, inaugurando a Confeitaria Cisne, no nº 162, local bonito, elegante e moderno, onde era explorado o ramo de Confeitaria na parte da frente, e, ao fundo, imenso serviço de bar, onde imperava o famoso garçom Zé Américo, homem que sabia tudo.
A Cisne teve vida longa, funcionando por quase 25 anos, servindo à cidade e seu povo exigente, numa Natal adulta, aos americanos que chegavam.
Os irmãos Miranda eram simpáticos, atenciosos e amáveis, porém Rossini, por ser o mais extrovertido, era a figura principal. Delicado, simpático, paciente, de grande amabilidade e cara bonita, até quando ‘‘penduravam’’ uma despesa. Nunca o vi de cara feia, facilitando em tudo a vida da freguesia. Havia de tudo na Cisne, e bebia-se de tudo. Os ricos pediam whisky estrangeiro e a população média tomava rum, conhaque, cachaça. Mas a preferência era pela cerveja. Existiam os cervejeiros especiais também. Vi Xico Lamas, certa vez, apostar e ganhar, adivinhando três copos, com cerveja de três marcas diferentes: casco verde, casco marrom e casco preto.

Bozó

Havia os fregueses solitários, como o comerciante Omar Furtado, que vinha todo dia, às 10h da manhã, tomava duas cervejas e ia embora. Pela manhã, entre os jogadores de bozó de cinco dados, era uma alegria presenciar uma partida do professor William Aires, o célebre professor de matemática do Atheneu. Literatos, médicos, advogados e militares graduados também freqüentavam a Cisne. De manhã, podia se encontrar ali Cascudo, Amaro Mesquita, General Leitão, Zé Aguinaldo, Pelusio Melo, Veríssimo Melo, João Medeiros Filho, sempre contando suas aventuras, João Machado Gordo, José Melquíades, membros da Federação de Futebol e outras entidades esportivas.
E a turma mais jovem, aprendendo o caminho, também passou a freqüentar a Cisne. Era um movimento muito grande pela manhã, de tarde e de noite. Havia fregueses para todas as horas, assim como os ‘‘especiais’’. O Rei Momo, Wilson Maux, grande cervejeiro, Luizinho Doublecheck, Clóvis Guerreiro e muitos outros dos bares vizinhos, como a Baiúca e o Pk Bar, de Rui Praieiro, que vinham mudar de ambiente.
Certo dia, entrei no bar e, sozinho numa mesa, estava um rapaz moreno e simpático tomando uma cerveja. Olhou para mim e, de dedo em riste, perguntou: ‘‘Você é que é Protásio Melo? Respondi que sim, e ele continuou: ‘‘Você escreveu um poema na Revista ‘‘Bando’’: Perdi no meu sonho a estrela da tarde, não foi? Respondi que sim, e ele disse: ‘‘Diga a Manoel Rodrigues que mude o nome de ‘‘Bando’’, que sugere cangaceiro, morte, sangue. Um poema bonito e lírico como o seu não devia estar ali’’. Então, perguntei: ‘‘quem é você’’? Disse: José Gonçalves de Medeiros.
Estava diante do poeta mais badalado do Rio Grande do Norte a elogiar um poema de minha autoria. Na Cisne, se tramavam coisas e até golpes políticos. Os estudantes do Atheneu também iam ao bar. Mas como dinheiro de estudante é minguado, demoravam pouco tempo. Vi muito por lá o estudante apelidado de ‘‘Pecado’’, Danilo Bessa, Berilo Wanderley, Pompeu, Claudionor Filho. Militares graduados de várias estrelas tomando discretamente whisky.
E corre o tempo, a Cisne prospera, aumenta a freguesia e começa a fazer parte da fisionomia de Natal. Do lado de fora, formavam-se rodinhas: médicos, advogados, jogadores de futebol, desportistas, bicheiros, vagabundos de toda espécie, pedintes.
A Cisne dos Miranda tornou-se um marco na cidade de Natal.



Minhas botas canguleiras

Laferre de Melo
Ex-repórter



Nos idos de 43/45, no auge da presença dos sobrinhos do Tio Sam em Natal - os “galegos” como os chamávamos –, entre os meus cinco e sete anos, quando tudo era novidade até mesmo para os adultos, tomei muita Coca-Cola, mastiguei, masquei, muito chiclete daquele fininho, vi muita “gente grande” tomando cerveja em lata e fumando “Camel”, “Phillips Morris”, “Lucky Strike”. Dos maços de cigarro vazios, fazíamos as “notas” para apostar biloca nos quintais vizinhos.Como meu pai e um irmão mais velho trabalhavam em Parnamirim Field não faltavam as “cocas”, de segunda ao sábado de meio-expediente. Geladeira nesse tempo era coisa de rico. As garrafas escuras meu Pai as trazia, seis ou mais, do “Campo”, quase anoitecendo, bem acomodadas sob muito gelo e serragem, num depósito de madeira com alça. Rafik de “Seu” Izidin (Nagib) da bodega, Doca de “Seu” Ruben (Câmara) da “Saúde” e Zelinho de “Seu” João (Vasconcelos) da padaria, olhos pidãos, pigoravam, quase todo santo dia, a tal novidade made in USA e bebiam, satisfeitos, arrotando a cada gole, pelo menos um copo. Era uma festa na rua Felipe Camarão, ali bem perto da Juvino Barreto...!

Washington, o mano mais velho – que deixara o emprego na “Força e Luz” e o Sindicato dos Eletricitários com um companheiro de diretoria chamado Jessé Pinto Freire –, era o Pagador-Geral do pessoal civil de Parnamirim, conhecendo deus e o mundo: brasileiro paisano ou fardado, de soldado raso a general americano. Falando fluentemente inglês, nos dias e horas de folga, apesar dos renovados protestos de mamãe, farreava adoidado com os gringos – competentíssimo cicerone, “guia turístico” de largos conhecimentos em uma Natal de apenas uns 50 mil habitantes, até antes da guerra uma aldeia provinciana e quieta.

O “pacote”, em geral – pude saber, anos depois, já taludo -, além dos meretrícios mais manjados, o “baixo” (XV de Novembro, Beco da Quarentena, Bica da Telha e Rua São Pedro) e o “alto” (Maria Boa, Maria de Josino, Rita Loura), circunavegava também pelo Grande Ponto, Tavares de Lira, Canto do Mangue, Grande Hotel, Lagoa do Bonfim, Macaíba, São José e – pasmem todos – Fernando de Noronha! Para o tour no arquipélago chegava a patota a requisitar, nessas “missões”, B’s25 (Parnamirim-Noronha-Parnamirim) e hidroaviões Catalina (Rampa-Noronha-Rampa). As desculpas (amarelas) para tantos deslocamentos eram as mais diversas: pagamento do pessoal civil, checagem de equipamentos e instalações, inspeções – o escambau. Nessas esbórnias todas por Natal e adjacências, à exceção de outra rota aérea Rampa-Lagoa do Bonfim-Rampa, os traslados terrestres eram todos cumpridos por jeep’s. Raramente em “carros-de-praça” (os táxis de hoje), usados tão-somente quando as girl’s friend’s (leia-se “piranhas”) exigiam maior discrição e comodidade. Parnamirim, a incipiente Vila de então, obviamente, face à proximidade dos chamados “escalões superiores”, era descartada de toda essa azáfama turística...

Saudades do meu irmão Washington ! Em um desses seus dias de turista irresponsável, chegou lá em casa, de-meio-lastro-a-queimado, na companhia de um aviador americano do tamanho de um bonde, galego rosagá, suado como os seiscentos. Levou-me e a Netinho, um ano mais velho do que eu, à oficina de um seu amigo na Travessa Aureliano, na Ribeira. Em meio ao alvoroço do estabelecimento, cheio de operários e clientes, “Seu” Edísio, o inventor das famosas flying boots, ajoelhado e risonho, tirou-nos as medidas, riscando sobre uma cartolina,um a um, os contornos dos nossos pés descalços. Uma semana depois, sob os olhares mansos e risonhos de Othoniel e Maria, posávamos, na Praça Pedro Velho, para a máquina de Washington. Nas canelas finas, brilhando mais do que espinhaço de pão doce, as famosas “botas dos americanos”, tão canguleiras quanto eu – que nasci na rua Ferreira Chaves, Ribeira velha de guerra...


AS BOTAS DOS AMERICANOS

Av Tavares de Lyra - Natal


Escritor e imortal da ANL, LENINE PINTO, em e-mail dirigido a Laélio Ferreira e Roberto Guedes, dá notícia acerca do "mais popular artigo produzido na cidade" durante a Segunda Guerra Mundial


Meus caros Roberto e Laélio,

Aqui vai a notícia sobre as famosas "botas de Natal" (ou flying boots), o mais popular artigo produzido na cidade durante a guerra e que os americanos espalharam pelo mundo nos pés dos pilotos do Air Transport Command (ATC) que transitavam por aqui antes de pularem para seus destinos nas frentes Egito-Mediterrânea, China-Birmânia-India e até na Russa.

Sabia-se, na época, que essas botas de meio-cano e boca folgada, feitas em couro do curtume artesanal de Epaminôndas Brandão, foram "inventadas" ou resultaram de um erro do mestre-sapateiro Severino Edísio da Silveira, ao confeccionar um modelo sob encomenda. Não saíra como o cliente americano queria, mas este experimentou, gostou, o sucesso foi grande e imediato.

O estabelecimento de Edísio ficava na Travessa Aureliano, quase em frente à loja Paris em Natal, o magazine masculino chique da época, o que valorizava seu "ponto", aliás, fotografado para reportagem da revista LIFE sobre Natal (edição de 6.8.43: Air Transport Command Base – Under U.S. military men, a Brazilian airfield at Natal becomes the wartime crossroads of the world.). Obtive cópias de algumas fotos dessa matéria, via Internet, graças ao nosso comum amigo Leonardo Barata.

Com o crescimento da demanda por tais botas, surgiram três ou quatro concorrentes, mas nem todos caprichavam no material empregado e o The Sat'd Weekly Post, editado em Parnamirim, numa matéria intitulada "Boots Boosts Sales of Largest PX" ("Botas aumentam vendas do maior reembolsável"), publicada em 19.6.45 - e embora reconhecendo o atrativo comercial das flying boots - investe contra a qualidade das mesmas: "elas não duram muito."

Bom, era artigo fino, para aviadores, não substitutos para as reiúnas da infantaria.

Por outro lado, o advogado Túlio Fernandes, em depoimento a Protásio Melo, levantou a hipótese de que essas botas teriam sido criadas por seu sogro, o discreto Pedro Nolasco, empresário do ramo calçadista, que instalara, sem que ninguém suspeitasse, "uma bela fábrica" na avenida Tavares de Lyra (prédio hoje pertencente à Tribuna do Norte) e ali confeccionara "as primeiras botas daquele tipo" (Protásio Melo, Parnamirim e Natal na II Guerra Mundial, p. 135.). Marcelo Fernandes, irmão de Túlio e que trabalhava em Parnamirim, sabe que seu Nolasco era grande fornecedor de botas para exportação tax free.


Já o brigadeiro Ivo Gastaldoni, que serviu aqui como aluno e depois instrutor da USBATU (United States-Brazil Air Training Unit), discorrendo sobre a Base Aérea de Salvador, conta que, entre os prédios daquela Base, era tudo "terra batida, arenosa, com minúsculas pedrinhas que se infiltravam no sapato e incomodavam paca". Essa peculiaridade - acrescenta - induziu à criação de um novo tipo de calçado que acabou sendo muito popular no Nordeste: era uma espécie de bota, cujo cano subia somente até o meio da canela. Esta botinha impedia totalmente a entrada das pedrinhas, principalmente se usada por baixo da perna da calça comprida" (Ivo Gastaldoni, A ÚLTIMA GUERRA ROMÂNTICA/ Memórias de um piloto de patrulha, p. 119. Grifo, nosso).

Ninguém menos que o próprio Comandante-em-Chefe da Força Aérea do Exército dos Estados Unidos, General Henry H. Arnold, para dirimir a questão. Num artigo intitulado The Aerial Invasion of Burma, publicado no The National Geographic Magazine de agosto de 1944 (pp. 129-148), que obtive graças ao empenho e generosidade de Ronald Levinsoh, o general relata:

"O Original de Terry e os Piratas - No quartel-general da AAF [Army Air Forces] entraram dois jovens oficiais bem recomendados. Um era o Coronel Philip G. Cochran, de Erie, Pennsylvania, piloto de caça com 34 anos de idade, que demonstrara notável espírito de liderança no Norte da África. Cochran ainda calçava suas botas de couro de Natal, com a bainha das calças enfiadas nelas..." (Grifo, nosso)


Outro produto que fez muito sucesso foram as "Natal Bags", cópias das sacolas carry all anunciadas no catálago da SEARS. Heider Mesquita, filho do proprietário da Natal Modelo, contou-me que alguns americanos chegavam na loja com os canos das botas entulhados de dinheiro e enchiam tais sacolas com meias de seda das marcas Leda e Lídice (fora das caixas e bem socadas para caberem mais). Quando o pai conseguia, na base de "pistolão", disponibilidade nos aviões da Cruzeiro e da Panair para trazê-las do Rio e São Paulo, as vendas alcançavam cerca de dez mil pares a cada 15/20 dias. Receita de 30 a 40 mil dólares/semana, assim mesmo inferior ao faturamento da concorrente Casa Rio.

Clyde Smith Jr., reportando-se ao movimento do PX (Post Exchange) de Parnamirim - que considera "o maior do mundo" com base em informações de The Official History of the South Atlantic Division-ATC: "quase US$50,000.00 em um único dia" - assinala que os artigos mais procurados ali eram as botas, relógios suíços e... meias de seda" (Clayde Smith Junior, Trampolim para a Vitória, p. 105), justamente aqueles destacados na edição da LIFE, acima mencionada.

Disponham sempre do seu amigo,

Lenine


A primeira dama de Natal



Natal, década de 40 - A cidade fervilhava de militares americanos e brasileiros. Aviões, hidroaviões, Catalinas e Jeeps patrulhavam a vida dos natalenses.

Instalava-se na cidade a paraibana de Campina Grande, Maria Oliveira Barros (24/06/1920 - 22/07/1997). Começava neste ínterim a história da mais conhecida casa de tolerância do estado (do país ou do mundo?).

Entre as movimentações na Ribeira, nas pedidas de Cuba Libre no saguão do Grande Hotel, nas notícias pelas Bocas de Ferro, na Marmita, em Getúlio e em Roosevelt e na nova geração de meio americanos e meio brasileiros, lá estava Maria Barros enaltecendo-se na Cidade do Natal como a proprietária do melhor (ou maior) cabaré.

Tornou-se conhecida como Maria Boa. Mesmo com pouco estudo ela despertou o gosto por música, cinema e leitura. O seu "estabelecimento" era o refúgio aos homens da cidade, com residência fixa ou, simplesmente, por passagem por Natal.

Jovens, militares e figurões acolhiam-se envoltos as carnes mornas das meninas de Maria Boa. Muitas mães de família tiveram que amargar, em silêncio, a presença de Maria Boa no imaginário de seus maridos em uma época de evidente repressão sexual.

Vários fatos envolveram a personagem. O episódios mais comentado foi a pintura realizada pelos militares em um avião B-25. Um dos mais famosos aviões da 2a Guerra Mundial, os B-25 eram identificadas com cores características de cada Base Aérea. Os anéis de velocidade das máquinas voadoras da Base Aérea de Salvador eram pintados com a cor verde. Os aviões de Recife, com a cor vermelha, e os de Fortaleza, com a cor azul. Para a Base de Natal foi convencionada a cor amarela.

Os responsáveis pela manutenção dos aviões em Natal imaginaram também que deviam ser
pintados no nariz do avião, ao lado esquerdo da fuselagem junto ao número de matricula, desenhos artísticos de mulheres em trajes de praia.

Autorizada pelo Parque de Aeronáutica de São Paulo, a idéia foi colocada em prática. Pouco tempo depois, os B-25 de Natal surgiram na pista com caricaturas femininas e alguns até com nomes de mulheres.

Alguns militares da Base escolheram o B-25 (5079), cujo desenho se aproximava mais da imagem de Maria Barros. Outras aeronaves também receberam nomes como "Amigo da Onça" e "Nega Maluca".

Quem custou a acreditar neste fato foi a própria Maria. Até que alguns tenentes decidiram levá-la até à linha de estacionamento dos B-25 logo após o jantar para não despertar a atenção dos curiosos. Ela constatou o fato. As lágrimas verteram de seus olhos quando viu à sua frente, pintada ao lado do número 5079, a inscrição "Maria Boa".

O mito "Maria Boa" rendeu trabalhos acadêmicos como o da Sra. Maria de Fátima de Souza, intitulado: "A época áurea de Maria Boa (Natal-RN 1999)". O trabalho aborda o

"fenômeno da prostituição infanto/juvenil, suas conseqüências e causas no desenvolvimento físico e psicossocial de crianças e adolescentes(...). Com o aprofundamento dos estudos percebemos o importante papel dos bordéis na prostituição, bem como o fechamento dos mesmos(...). Chegamos então ao cabaré de Maria Boa, já fechado. Tivemos, assim, a oportunidade de conhecer um pouco da saga da Sra. Maria de Oliveira Barros, uma profissional do sexo, com grande importância na história da prostituição de adultos, ou ainda, tradicional; das histórias contadas a seu respeito chamou-nos atenção para sua representação social, seu "mito" e sua ligação com o imaginário masculino. Com isso, passamos a averiguar mais profundamente uma participação na sociedade da época e buscamos reconstruir parte de sua história enquanto meretriz, cafetina, e proprietária da mais famosa casa de prostituição que o RN já conheceu."

Em 26 de março de 2003 o cantor Valdick Soriano, quando entrevistado por Everaldo Lopes, registrou que quando esteve em Natal, pela primeira vez, cantou até para as meninas de "Maria Boa".

Hoje bebe-se Maria Boa em alguns bares de Natal. Uma mistura de creme de cassis, vinho branco ou champanhe embriaga as lembranças da maior cafetina da cidade.

O Professor Assistente do Departamento de Letras Márcio de Lima Dantas publicou e 28 de abril de 2002 o texto "Retratos de silêncio de Maria Boa".

"(...)Para além da atitude ética de proteger sua família, o que faz parecer um jogo com a hipocrisia da sociedade, penso que, na atitude de se manter reservada, se inscreve um outro aspecto digno de ser ressaltado. Falo do mito que entorna a personagem Maria Boa, de certa maneira, criado e ritualizado por ela mesma, dimensão de fantasia para além do empírico vivenciado. (...).

(...) Astuciosamente se fez conhecer por "Maria", o antropônimo mais comum no universo feminino, genérico e pouco dado a divagações semióticas. Ironicamente é o nome da mãe de Jesus... Quem não tinha conhecimento no Estado de uma proprietária de um requintado lupanar, e que se chamava Maria, a Boa. O mito, da constituição do éter, era aspirado por todos, preenchendo necessidades, ocupando lugares no espírito, imprimindo fantasias nos adolescentes, despertando em jovens mulheres às aventuras da carne, engendrando adultérios imaginários. Integrava, assim, o patrimônio individual e coletivo. (...)"

Eliade Pimentel, no artigo "E o carnaval ficou na memória" destaca a presença de Maria Barros nos carnavais de Natal:

Lá pela década de 50, os desfiles passaram a acontecer na avenida Deodoro da Fonseca. Maria Boa desfilava com Antônio Farache em carros conversíveis,"

O Jornalista Agnelo Alves quando escreveu o artigo "A Natal que governei e o 3º Milênio" citou o cabaré de Maria Boa como ponto de referencia geográfica para informar sobre as suas obras quando prefeito de Natal.

"(...)Desobstruir para crescer. Alargar para trafegar. Conversei com os arquitetos João Maurício Miranda e Daniel Holanda. Como fazer? Lancei o desafio. Sem a contra-partida de nenhum pagamento, os dois me apresentaram o esboço da solução, surgindo daí o primeiro Plano Viário de Natal com a primeira estação metropolitana da cidade. Asfaltar a Hermes da Fonseca até o contorno com a Praça Aristófanes Fernandes, seguindo daí em linha reta até a Duque de Caxias. Ponto um. Asfaltar a Duque de Caxias, subindo pela Junqueira Aires, via Praça das Mães, pegando a lateral por trás do Tribunal de Justiça (hoje OAB) até a Praça André de Albuquerque, prosseguindo pela Praça das Laranjeiras, Padre Pinto, sobrando em Maria Boa para sair na lateral do cemitério, já no Alecrim, ou numa primeira etapa prosseguir pela Padre Pinto até o Baldo e aí tomar o rumo do Alecrim.(...)"

Maria Barros é história. Mesmo sendo paraibana é a Primeira Dama (ou anti-Dama) de Natal. Impera nas lembranças dos seus contemporâneos e se faz presentes nos prostíbulos que ainda resistem nas periferias da cidade ou travestidos de casas de "drinks" nos bairros mais nobres.

Maria Barros é citada no filme For All - O Trampolim da Vitória (vencedor do Festival de Gramado em 1997, com os prêmios de melhor filme brasileiro, melhor filme do júri popular, melhor roteiro, melhor direção de arte e melhor trilha sonora de filme brasileiro), de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz. O filme retrata a cidade do Natal em 1943 quando a base americana de Parnamirim Field, a maior fora dos Estados Unidos, recebe 15 mil soldados, que vão se juntar aos 40 mil habitantes da cidade.

Para a população local a guerra possuiu vários significados. A chegada dos militares americanos alimentou fantasias de progresso material, romance e, também o fascínio pelo cinema de Hollywood. Em meio aos constantes blecautes do treinamento antibombardeio, dos famosos bailes da base aos domingos, dos cigarros americanos, da Coca-Cola e do vestuário estavam os sonhos natalenses. Sem questionamentos, "Maria
Boa" foi uma das principais atrizes no elenco desse belicoso teatro. A Primeira Dama Maria Boa...

José Correia Torres Neto


Natal - Uma pitada de História


José Alexandre Odilon Garcia

Por que cidade do Natal?
Porque assim a chamou o capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, que, enviado de Felipe II, rei de Espanha e Portugal, para colonizar o território e coibir o abuso dos piratas que aqui traficavam pau-brasil com a ajuda dos índios Potiguares - naquela clara manhã do dia maior da cristandade, em 1599. Pura e singela homenagem ao 25 de dezembro.

O local exato do primeiro marco
Um terreno elevado e firme, de impressionante beleza selvagem, a meia légua do Forte dos Reis Magos, foi o local escolhido pelo fundador (pernambucano, mameluco, filho de valente oficial português e mãe indígena) para lá fincar o pelourinho, símbolo do poder real e marco inicial duma cidade que nascia sob o signo da Estrela de Belém. É a atual praça André de Albuquerque, na Cidade Alta.

Melhor pau-brasil da costa
Trecho duma carta, datada de 1564, do próprio punho de Jerônimo de Albuquerque, filho do primeiro donatário, a El-Rey; "Necessário se fazer povoar a capitania, antes que os franceses o façam, franceses que daqui levam, todos os anos, naus e mais naus carregadas de pau-brasil, por sinal o melhor de toda a costa".
Trinta e cinco anos depois, El-Rey acreditou ser hora de agir. Os piratas, agora não somente franceses, mas de todas as nacionalidades, agiam impunes por todo o litoral e alguns tomavam atitudes de verdadeiros senhores da terra. Para pôr fim à traficância, foi autorizada a construção de um forte.

O Forte dos Reis Magos
O formato é semelhante a tantos outros fortes marítimos, disseminados ao longo da costa brasileira. É uma sólida construção em forma de polígono estrelado, medindo 64 metros de comprimento e erigido em cima de arrecifes, ficando ilhado em maré alta, a 750 metros da barra.
Iniciado em 6 de janeiro de 1598, daí a sua denominação. Em 1608, Dom Diogo de Menezes, Governador Geral, informava que a "povoação está feita, mas não tem gente". Mesmo assim, três anos depois, considerava-a, oficialmente, como município. Mas, em 1614, apenas 14 casas contavam-se na cidade, menos de uma por ano, desde a fundação. Em 1671, as estatísticas não espelhavam melhoria: existiam 60 casas. Somente.

Os ferozes Potiguares, inimigos dos portugueses
As relações inamistosas entre colonos e as nações indígenas aqui sediadas, como Potiguares e mais Cariris e Janduis, principalmente os Potiguares, eram o grande entrave e fonte permanente de desassossego. Curioso - os Potiguares sempre foram visceralmente hostis aos portugueses. Antes da colonização, eram excelentes amigos dos franceses. Depois, constituir-se-iam em força auxiliar de decisiva importância para a vitória das armas holandesas. Talvez o motivo fosse de simples tratamento. Enquanto os adventícios os tratavam de igual para igual, os lusitanos nunca se esqueciam que eram não só os novos senhores da terra, como de quantos a povoavam. E, não raro, procuravam, à força, reduzi-los à escravidão.

A figura de Felipe Camarão
Somente na guerra pela restauração pernambucana, os Potiguares olvidaram velhas rixas e uniram-se aos portugueses e negros, na primeira amálgama da raça, para a expulsão do holandês invasor. Aí, surge a figura do nosso primeiro herói, o cacique Felipe Camarão, amigo de Henrique Dias e André Vidal de Negreiros, aliado de João Fernandes Vieira. As envenenadas flechas de seus temíveis guerreiros muito contribuíram para a total expulsão dos flamengos.

Tremula outra bandeira no Forte dos Reis Magos
Vinte anos duraria o domínio batavo no Rio Grande do Norte, desde aquele dezembro de 1633, quando 14 naus, sob comando do almirante Lichthardt, abriram fogo sobre o forte, enquanto Baltazar Bijama, por terra, com dez companhias fortemente municiadas (desembarcadas em Ponta Negra) completavam o cerco. A resistência foi quase quixotesca dada a desproporção das forças. Oitocentos contra oitenta. Mesmo assim, o capitão Pero Mendez de Govea ganhou a admiração dos vencedores, merecendo honras militares.
Arriada a bandeira lusa, outro pavilhão foi içado e tremulou no forte, que passou a chamar-se Castelo Ceulen, a bandeira da Companhia das Índias Ocidentais.

Quando Natal foi Nova Amsterdã
A imaginação popular atribui grandes modificações, e notáveis feitos, realizados sob inspiração dos holandeses nas duas décadas em que Natal foi crismada de Nova Amsterdã.
Nada mais falso. O próprio Maurício de Nassau, após inspeção em 1638, queixava-se à alta administração de sua Companhia, que a "terra era muito decaída, devastada pela guerra, e precisando de tudo".

Progresso a conta-gotas

O panorama não mudou grande coisa com a reintegração à soberania lusitana. Durante séculos e séculos, a cidade dormiu pachorrenta, esquecida de todas as administrações centrais, em verdadeiro progresso a conta-gotas, fossem elas exercidas por reis, vice-reis, regentes, imperadores e presidentes da República. Inicialmente, fez parte da Província da Bahia. Durante todo o Brasil-Colônia, gravitou à órbita de Pernambuco. Atingiu foros de província em 1817.

Salto para a frente
Somente em 1942, quando Getúlio Vargas e Franklin Delano Roosevelt acertaram os ponteiros no histórico encontro de Parnamirim, para a soma de esforços pela vitória sobre o Eixo, Natal despertou de seu longo sono de cidade pobre, sem indústria e comércio e de apenas 40 mil habitantes (até início da quarta década do século XX).
Foi preciso uma guerra para transformar um pequeno burgo em Trampolim da Vitória. E para que a cidade lendária, surgida às margens do Potengi, desse o seu salto para a frente.
Em 1942, a II Conflagração Mundial, iniciada na Europa, transferira o seu campo de ação para o Continente Negro, mais precisamente para a África Ocidental. E Natal, dado a ser o ponto mais próximo da África, distante apenas horas de vôo de Dakar, teve a sua posição estratégica ressaltada.
Forçoso era aparelhá-la para prevenir o futuro e para transformá-la realmente em Trampolim da Vitória.
Pela Base de Parnamirim, construída em tempo recorde, transitavam, às centenas por dia, aviões a transportar tropas, armamentos e víveres para os soldados de Montgomery em sua luta de vida e morte com o orgulhoso marechal Von Rommel.
Aqui, concentraram-se grandes contigentes militares, brasileiros e americanos.

Praça de guerra
Natal foi considerada, então, praça de guerra. E viveu uma trepidante fase, com suas ruas repletas de soldados de todas as nacionalidades, um dos pontos escolhidos por americanos, canadenses e ingleses para as suas horas de licença. Em meses, a população duplicava e a cidade expandia-se em ritmo febril.
Este impulso vitalizador embalou a cidade para o futuro. Mesmo quando o ambiente militar foi substituído pela rotina dos tempos de paz, a cidade não parou de crescer. Data deste tempo a ampliação da Base de Parnamirim e a construção da Base Naval, Dique-Seco e quartéis de unidades do Exército.

Natal dos Idos 40
José Alexandre Odilon Garcia


Como era Natal nos anos 40? Natal era cidade modorrenta e provinciana, 40 mil habitantes espremidos entre Ribeira e Cidade Alta, até a avenida Deodoro, se muito. O resto era a pobreza franciscana das Rocas, os sítios do Tirol, a mata de Petrópolis, o Alecrim ensaiando os primeiros passos.
Sem muitas perspectivas. Mesmo os filhos da terra, faziam feroz autocrítica.
- Cidade do já teve, classificavam, ironizando a apatia reinante, onde a maioria se masturbava sadicamente quando iniciativa das mais audazes entrava em colapso. - Uma fazenda iluminada, nada mais, definia João Machado.
Mas, assim como as pessoas, as cidades têm o seu instante de afirmação, o seu dia de superação, o empurrão providencial, o chamado passo a frente decisivo e consagrador.
Para Natal, este momento foi a II Grande Guerra, ou, para sermos mais minudentes, justamente na fase em que, triunfantes e arrogantes - ocupadas e vencidas a Polônia, a França, os Países Baixos e Nórdicos, humilhada a Inglaterra no desastre de Dunquerque - os germânicos voltaram cobiçosos olhos para as reservas petrolíferas do Continente Negro.
- Estamos vivendo os primeiros anos do I Milênio do III Reich - perorava Hitler em seus histéricos discursos.
E, de fato, a Germânia parecia a senhora do mundo, com suas moderníssimas armas, as blitzs, o rolo compressor das pan-diviziones, as minas espalhando terror pelos mares do mundo.
Os aliados, então, concluíram que se os nazistas realmente se apoderassem do petróleo africano, tudo estaria perdido.
E resolveram enfrentar o invicto Von Rommel de peito aberto, frente a frente, na base do agora ou nunca.
E onde entra Natal neste imbróglio, perguntarão vocês.

Natal, que dormitava sonolenta
Natal, dos tempos idos de 40
Recordo os belos bailes do Aéro
Num banco da Pracinha, ainda lhe espero
No Rex, sessão das moças, Quarta-feira
Natal, Cidade Alta e Ribeira
O bom você não sabe e eu lhe conto
O footing, à tardinha, no Grande Ponto!

É que Natal, como cidadela mais próxima da costa africana, era ponto estratégico por excelência,
de importância vital, reconhecida e proclamada posteriormente como Trampolim da Vitória.
E pela Base de Parnamirim passaram a transitar, às centenas, diuturnamente, fortalezas voadoras transportando tropas, armas e víveres para fronts até então desconhecidos internacionalmente, mas que seriam celebrizados mais tarde como Tobruck e El Alamein, como os primeiros grandes passos da grande arrancada que seria, daí por diante, a caminhada até a parada final em Berlim. Enfim, a suspirada "virada" que transformaria os até então vencidos em vitoriosos. Para garantir esta operação-África, foi preciso o suporte e o apoio logístico de milhares de brasileiros e estrangeiros, principalmente americanos que estabeleceram uma praça de guerra chamada Natal.
Uma base naval foi construída em tempo recorde, ampliadas e triplicadas as instalações da base aérea, construídos quartéis à toque de caixa, para alojar não apenas os infantes, mas grupos de artilharia antiaérea, de carros de combate, transferidos do sul do país. Foi a época das noites de blecaute, do receio de ataques inimigos, dos ricos a construir abrigos sofisticados em suas residências e a Prefeitura a cavar abrigos populares em praças e terrenos baldios.
Eu disse, acima, praça de guerra? Pois era.

Um dia, tudo se modificou
O burgo se internacionalizou
Nas ruas, o alegre do my friend
Moçada, pela mímica, se entende
Natal entrou fardada na História
Para ser o Trampolim da Grande Vitória
Valeu o sacrifício do seu povo
Na guerra, meu Natal nasceu de novo!

E além do soldado e do marinheiro verde-amarelo, tornaram-se figuras corriqueiras a povoar avenidas, ruas e becos da cidade, gorros de marinheiro e fardas cáqui dos my friends.
Digo mais: quando a batalha africana atingia o seu clímax, Natal passou a ser a cidade-descanso, a cidade dos dias de licença dos combatentes.
E o que almejava um jovem de 21, 22 anos, com os bolsos cheios de dólares, doidos para esquecer a loucura dos campos de batalha e as longas vigias a bordo de belonaves? Divertir-se, gozar o hoje em toda plenitude, pois o amanhã era uma incógnita.
Na Cidade, então, floresceu um estranho comércio de bares, restaurantes, casas noturnas, joalheiros, grandes magazines, mercadores de mil e uma especiarias, 99% dirigidos por aventureiros de todas as nacionalidades e pátrias. Os quais, como tão céleres e misteriosamente aqui se instaram, também, num abrir e piscar d`olhos, cerraram portas e fizeram malas. Quando terminada a Batalha da África, com a vitória aliada, as operações militares retornaram ao continente europeu, começando pela bota italiana da Sicília.
Mas, voltando aos idos 40, era natural, pois, que num clima de febricidade como aquele, houvesse freguesia para todos os gostos, mesmo os paladares mais requintados, a exigir bombons de luxo, doces em conserva, bebidas finas, artigos enlatados e conservas em geral.
Como disse o compositor em música, "na Guerra, meu Natal nasceu de novo". Foi. Porque, desde então, o progresso instalou-se definitivamente como artigo de fé no burgo, arquivada, bem arquivada, aquela maldição e pecha infamante de terra do já teve.
Como quem queria recuperar o tempo perdido, Natal nunca mais parou de crescer, de expandir-se e ampliar-se em novos horizontes, de abrir novas artérias e, das artérias, multiplicar-se em novos bairros, povoando-os de belas residências.
O comércio, então, tornou-se tentacular, cada dia maior, ganhando a Cidade Alta, atingindo com força total o Alecrim.
Um pequenino detalhe que virou rotina e que até então ninguém dava a mínima importância: quem chegava ao burgo gostava de seu jeitão, do clima, da brisa que sempre sopra, vinda do Atlântico mesmo nas tardes mais quentes. Da beleza paradisíaca de suas praias. Da maneira de ser do seu povo simples, a transformar, em cinco minutos, em amigo do peito, cidadão a quem nunca vira mais gordo, e a levá-lo para sua casa e a franquear-lhe as delícias de sua mesa típica.
A carne seca com feijão verde, macaxeira, farofa de bola, manteiga de garrafa, peixada, a caranguejada, o sarapatel, camarões, lagosta, a boa caninha com caju de conta.
Sim! E suas mulheres, lindas e esculturais? De virar cabeça!
Acrescente-se este ar de permanente feriado que a cidade tem, a pedir pernas para o ar, lazer, languidez, alegria, boemia, violão, seresta, amor...